A vaidade - I



Lurdes saltou da cama. Rapidamente vestiu a roupa que estava pendurada na cadeira, amarrou os cabelos curtos num rabicó, alto e mal feito - estava atrasada, esqueceu-se dos grampos - tomou um café requentado e saiu, correndo, para o ponto de ônibus. 


Joana não estava muito disposta naquela manhã. Sentou-se e escovou demoradamente os cabelos enquanto conferia se tudo estava no lugar. Ela não sabia ao certo se seu medo era de "derreter" ou se um dia Deus ia castigá-la por ter mudado tanto o próprio corpo. Logo esqueceu e voltou a escovar com mais intensidade os longos fios dourados até obter a composição perfeita e desejada. Conferiu as horas e ficou impaciente, 10 e meia e sem café. Ia escolher a roupa para a noite quando a porta abriu e uma bandeja anunciava a chegada de Lurdes, meia hora atrasada.

- Você é debil mental? Atrasa meu café, não bate na porta e traz pão com queijo! É sério isso? Você quer perder o emprego? Sorte sua que sou muito boa.

Olhava para Lurdes, não com pena, mas com nojo. Nojo da mulher negra que tocava sua bandeja de prata, que fazia sua comida e que lavava sua roupa. Nojo de toda aquela expressão que Lurdes carregava estampada na cara, rugas e, principalmente, do cabelo preto, preso, sujo. Como odiava a empregada. Sentia-se superior, mas tinha medo da sua dependência àquela coisa e temia ainda mais que ela percebesse. Repreendia a criada sempre que falava, pois sua convicção e clareza faziam com que ela se sentisse burra.

Lurdes ouvia com dó tudo o que sua patroa gritava. Tinha pena da insegurança dela e - apesar de todas as jóias, marcas e roupas da patroa ser o mais próximo do luxo que ela chegaria em toda sua vida - não sentia um pingo de inveja de Joana. Sabia o quanto aquilo privava a mulher de viver e que sem aquilo ela não saberia viver. Deixou a comida no quarto e saiu. 

Naquela segunda, tão fria quanto o apartamento, tinha muito serviço e pouco tempo até o almoço e Augusto chegarem. Se acostumou com o jeito da patroa, que não era em nada igual (fisicamente) à mulher morena e gordinha que a contratou cinco anos antes. Percebeu que não falar nada a tornava menos desagradável, mas não deixava de fazê-lo. Passou a ser invisível e só observar. Era capaz de traçar um perfil psicológico e físico de Joana muito bem, tão fácil era a lógica que a movia. 

Augusto casou-se com Joana em 2010, três anos após a chegada dela na casa. Sabia que ela queria ser bonita pra que ele continuasse com ela, desfilando o casamento perfeito do casal perfeito e também sabia que ele se fazia interessado para continuar com um cartão de crédito dando acesso à conta da esposa e frequentando a casa e as festas da elite mineira. Um fingia não saber do desinteresse do outro, dissimulavam o amor. 

Joana estava a caminho da cozinha quando ouviu Lurdes:

- Tá bom meu moreno, mais tarde a gente se fala... Claro que sim. To com saudade! Te amo, até a noite.

Deu meia volta, queria ter aquilo. Pensou, lembrou-se de Augusto... era melhor, ela era melhor. O importante não era o que os outros sentiam por ela, mas como a viam. Era uma mulher tão feia por dentro que não poderia viver se não fosse bonita por fora.


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