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Mostrando postagens de 2014

Curtas lembranças sobre um curto casamento

Estava na hora de ser um pouco repetitivo, querida. Lembro-me tão recente como você costumava chorar ao cortar as cebolas, suas lágrimas ainda estão em minhas mãos. Sempre achei que as cebolas fossem uma desculpa para você não jogar tudo em cima de mim, na verdade sempre soube disso. Você se mantinha sempre quieta em nossas refeições e temia a mim. Querida, aquele tapa foi só uma vez, foi só uma cerveja a mais no bar, foi só um descuido. Nunca quis machucar você. Eu sempre quis te dar o amor puro, terno. Lembro-me tão intensamente como seus olhos vinham sempre de baixo, como uma reverência. Ainda que tivéssemos a mesma altura, meu bem. Sempre achei que fosse uma maneira de me fazer sentir bem, sentia-me assim. Você nunca me desafiou, sequer num olhar, amor. Eu adorava quando você me olhava bem de baixo, ainda que escorressem umas lágrimas, ainda que sua feição não fosse das melhores, meu amor, que prazer. Eu sempre quis te dar prazer! Lembro-me tão feliz como você nunca me pergunt

Curto relato sobre um domingo

Tinha areia nos peitos, um outro punhado na boceta e gosto de mar colado pela pele queimada. Os sentidos se confundiam e não sabia se era paz ou se era vento o que batia em sua alma. Entre um bocado de pedras sentia como era ser realmente íntima de alguém, sem a necessidade de fingir e fugir do que se é. Despertou algumas vezes naquele domingo. Transitar entre o sonho e os olhos abertos era bom de igual maneira, mas a irrealidade do dormir a convenceu de que acordar era mais interessante. Diferente de outros contatos, realmente se interessava pelo que tinha com aquele corpo e, quem sabe, com a alma que dormia ao seu lado. Tudo era distribuído de maneira que amaciasse quem o olhava. Não soube se por alegria ou por comoção deixou que uma trilha d'água escorresse por seu rosto. Sorrindo, secou-se e acordou o outro alguém. Beijos sonolentos, toques de mãos ainda adormecidas e a prazerosa sensação de sentir-se quista e de querer bem a alguém, por dentro, por cima. A comida perdia

Ser em outro olhar

Costumava pontuar cada afirmativa, explicar toda existência com alguma palavra, pelo menos. Era assim que me afirmava como eu. Uma mulher qualquer, que não gostava desse eu, disse para um alguém “Que ela guarde as opiniões dela para ela, quem as quer saber?”. Pensei: Quem algum dia quis saber, realmente?. O silêncio mostrou ser muito atraente desde então. Guardar tudo dentro de mim é um caos, mas não incomoda mais ninguém. Fiquei “alheia de mim” e “presente no mundo”, mas, ao contrário de Camus, senti-me rasa, cada vez mais rara na existência terrena e presa dentro de uma mente com vazios cheios de perturbações. Pensar no eco intrínseco ao silêncio me traz o questionamento de como soo aos olhos dos outros. Pareço ser desprovida de conteúdo, forma ou verdade? Se me acham mentirosa, não sei, mas quantas verdades me foram roubadas e assim mudaram em mim algumas certezas essenciais de lugar? Me mudaram de caminho. Quanto à forma, é tão evidente que não tem graça e as pessoas que medem alg

O coração que nunca bateu

Nos últimos dias, já não lembrava mais se o rosto redondo era da dona do nariz torto. Ou se a arrebitada e deliciosa bunda era da morena ou da velha. Tinha dificuldades em lembrar nomes, ainda que guardasse lembranças misturadas de mulheres desconhecidas.  Não era importante o rosto, a troca, ou quais os gostos e desgostos das escolhidas. Era mais pelo gosto do cheiro e pelo cheiro do gosto. Era pelo toque sem contrato. Pelo vazio tão prazeroso de se provar de tudo. Tentava se enganar, vez ou outra, mas nunca resistiu ao conforto que o descompromisso propicia.  O charme e a lábia criaram ao seu redor encanto suficiente para convencer os outros de um coração que não tinha. E mesmo assim era cheio. A vida foi plena, quantos peitos, sorrisos, formatos, tamanhos, cores, quanta variedade, que não deixaram marcas, mas passaram. Não tinha história para contar, tinha casos, que já eram mais um amontoado de lembranças misturadas que acontecimentos em si.  Foi um velho lindo, sem r

Fica na alma

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Não lembro mais quando foi a última vez que me peguei sorrindo numa conversa séria. Sorrindo com a dança que as palavras faziam quando ele escrevia. Talvez porque não conheço ninguém que consegiu usar tantas palavras certas juntas, como ele fez. Eu sempre preciso de alguém que me lembre "a peleja é longa, a batalha é sempre", mas só ele colocava as coisas desse jeito.  Apesar de tudo que me disseram ao longo da vida, nunca estarei pronta para lidar com a morte. Ainda tenho muita dificuldade em aceitá-la, mesmo depois de um ano, nove meses e vinte e seis dias, sinto tanta falta! Queimam os olhos e aperta a alma as lágrimas que a ausência dele me traz. A voz ecoa na memória, traz o cheiro do perfume caro, que não era mais marcante que seu cheiro. Tem ele em tudo e, ainda assim não tenho mais... A secura e o vazio do silêncio tomaram o espaço das suas palavras doces e macias, que acariciavam todo o meu corpo até acalmar o coração e me arrancar toda alegria possível. Eu detesto s